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domingo, 27 de abril de 2008

Uma noite para ficar na memória

foto de William Gottlieb


"A 30 de janeiro de 1938, o Quinteto estreou com entusiástica acolhida no Teatro Cambridge de Londres. Semanas depois, os músicos dividiram os aplausos com Tom Mix, famoso ator do cinema mudo."

- Andrew Rust



por Marcio Beck


É uma noite que nunca vou esquecer. Suponho, agora quando olho para trás, que foi uma noite realmente histórica. Eu a adorei, mas gostaria de ter prestado mais atenção na época, para que pudesse me lembrar de mais.


A frase não é de um personagem particularmente famoso no mundo da música. Não é citação vinda artigo de crítico de música nem historiador do jazz. É a palavra de um simples senhor de 89 anos que presenciou, naquela noite de domingo, uma das inspiradas apresentações do Quinteto do Hot Club da França. Sidney Baxter, o espectador em questão, é pai de Roger Baxter, que se definia modestamente como "um guitarrista amador de pouco mais de 60 anos, inglês de Warwickshire". Conheci-o virtualmente em 2000, por meio da lista de discussão GypsyJazzGuitar, abrigada pelo Yahoogroups.

Participei do grupo por meses, como completo leigo tanto em jazz quanto em Django Reinhardt. Em uma das discussões da lista, no início de minhas pesquisas, em março de 2001, Roger mencionou que seu pai assistira a uma apresentação de Django com o Quinteto, na Inglaterra, no fim da década de 30. Enviei-lhe um e-mail particular pedindo o favor de transmitir ao pai algumas perguntas. A primeira resposta que recebi foi bastante rica, mas ainda abusei de sua boa vontade e solicitei detalhes, sendo também prontamente atendido.

Em 1938, quando viajou de trem por várias milhas – de Gravesend, Kent, até Londres – Sydney Baxter tinha 25 anos. A viagem, por si só, "já era uma aventura naquela época", lembra seu filho, e ele ainda levou a esposa Janet, seis anos mais nova, para assistir à apresentação. Mais de seis décadas após o show, sua primeira impressão, curiosamente, é sobre a aparência e a maneira como os integrantes do Quinteto se dispunham no palco, não sobre as músicas.

Eles usavam ternos e pareciam muito espertos. Stephane ficava de pé à esquerda e ocasionalmente vagava levemente em frente aos guitarristas quando ele estava tocando um solo. As três guitarras ficavam em linha, com a de Django apenas um pouquinho à frente das outras duas. O baixista, Louis Vola, ficava atrás dos guitarristas. Eles tocaram duas sessões. Acho que cada sessão deve ter durado cerca de meia hora, mas era tão divertido que se perdia a noção do tempo.


A abertura, ele tem quase certeza, foi Djangology, cartão de visitas do grupo. Seguiram-se outros temas mais comuns em seu repertório, como Night and day, Daphné, Sweet Georgia Brown e a estonteante Mistery Pacific. Completo o set inicial, passavam a atender os pedidos da platéia, quaisquer que fossem. E não eram poucos. Cada sessão, pelos cálculos do meu entrevistado virtual, deve ter durado cerca de 30 minutos.

Eles podiam tocar qualquer coisa que as pessoas pedissem. Django olharia para Stephane, talvez diria umas palavras, e então eles seguiriam. Faziam parecer tão fácil. O público não os deixava ir. Eles simplesmente ficavam gritando por mais e eles tocaram vários números. Foi um excelente concerto informal, cheio de gente que obviamente adorava o estilo de Django e Stephane. Era uma atmosfera bastante feliz, quase aconchegante. Os dois pareciam pessoas muito amigáveis.


Guitarristas de expressão da época, como Eddie Lang, Carl Kress e Dick McDonough eram seus ídolos, até conhecer a música do "cigano Reinhardt". Depois, admite Baxter, todos passaram soar ultrapassados.

NOVIDADE

Era algo completamente distinto do que estava disponível na época em um mundo onde os saxofones, trumpetes, clarinetas e trombones davam as cartas, amparados por baterias e pianos; à guitarra era reservado um papel de mera sustentação rítmica da melodia. Daí o impacto que um solista nato como o cigano belga causava. Django Reinhardt foi o primeiro entre os jazzistas a tornar o instrumento, como afirmou B.B. King, "uma voz como outra qualquer".

Na época, as coisas que ele fazia com a guitarra pareciam completamente impossíveis. Algumas pessoas pensavam que as gravações eram adulteradas de alguma forma; provavelmente aceleradas. E ele podia conseguir aqueles efeitos afinando a guitarra à sua maneira esquisita. Eu nunca tinha ouvido nada como aquela música antes. Era totalmente diferente. Django parecia ser simplesmente incrível e ninguém mais conseguia fazer coisa parecida com aquilo mesmo com todos os dedos.


Dizem os críticos e biógrafos que seu intenso magnetismo pessoal atraiu as atenções de artistas famosos na França. É uma das características mais exaltadas pelos que se dedicaram a escrever sobre ele, mesmo que nunca o tenham visto tocar. Sydney Baxter viu o seguinte:

A maior parte do tempo, Django ficava totalmente impassível. Parecia tocar como não houvesse mais ninguém além do Quinteto na sala. Não era como se fosse inamistoso, parecia uma pessoa afetuosa, mas estava simplesmente totalmente absorvido pela sua música. Parecia totalmente relaxado e dificilmente olhava para algo além da sua guitarra. Mas às vezes quando tocava algo realmente especial, olhava para a audiência dando uma piscadela, com um meio sorriso, como se a dizer ‘então, o que acharam disto?’. Ao fim de alguns números, quando a audiência estava gritando por mais, ele levantaria a cabeça e sorriria timidamente, obviamente satisfeito que tudo estivesse indo tão bem.


ADAPTAÇÃO

Não havia como deixar de notar, no entanto, a maneira diferente como o cigano era forçado a abordar a guitarra, diante da paralisia parcial de sua mão. Teve de criar uma série de recursos de digitação e adaptar outros já existentes.

Os dedos de Django pareciam flutuar sobre as cordas e quando ele estava tocando solos, seus dois dedos bons ficavam paralelos ao braço da guitarra, ao invés de transversais. Às vezes esses dois dedos se cruzavam de uma forma que é impossível fazer. Quando tocava acordes, ele de alguma forma grudaria seus dedos dobrados, aleijados, nas duas cordas menores, acho.


No e-mail, Roger abre parênteses para colocar em perspectiva o que ele acredita que seja um exagero do pai. Cita um anúncio da época para a gravadora Ultraphone publicado no livro Django's gypsies, de Ian Cruickshank, em que os dedos do guitarrista aparecem numa posição classificada por ele como inacreditável:

Meu pai insiste que Django cruzava de verdade os dedos daquela forma quando estava tocando. Eu acho mais provável que ele fizesse algo como trazer o dedo médio imediatamente acima do dedo indicador e então instantaneamente afastar o indicador enquanto pressionava o médio contra o braço da guitarra.


O Quinteto do Hot Club da França dividiu a noite no Cambridge com Os Irmãos Mills, Eric Siday, Reginald Leopold & Frenchie Sartrell e a Claude Bampton's Blind Orchestra. Tocaram Django, Stephane, Roger Chaput, Eugène Vees e Louis Vola. O evento foi organizado pela revista Melody Maker. A apresentação da noite de 31 de janeiro teve nove temas registrados: Honeysuckle rose, Sweet Georgia Brown, Night and day, duas versões para My sweet, além de Souvenirs, Daphne, Black and white e Stomping at Decca.

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