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quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A grande obra do artesão do som



por Marcio Beck


A exótica guitarra desenhada pelo renomado luthier espanhol Julian Gomez Ramirez para seu amigo Baro não era suficiente para o impetuoso guitarrista de 23 anos, saído de uma convalescença de quase dois anos. Havia utilizado-a, tocando musette com a banda de Vetése Guerino na Boîte à Matelots, em Paris.

Seu desenho peculiar, com as duas aberturas no topo do corpo ajudava, mas como todas as outras antes dela, não produzia o som no volume que gostaria de alcançar. Queria competir com sopros, pianos... queria - aliás, precisava - fazer sua "voz" instrumental ser ouvida.

Apenas alguns quilômetros o separavam do italiano Mario Macaferri, que, num atelier na pequena Mantes-la-Ville, concretizava a mesma busca pessoal por mais volume nas guitarras. Macaferri, dez anos mais velho, aperfeiçoava sua invenção: uma guitarra desenhada para conter uma barra metálica que ressoaria com a vibração das cordas e do tampo.

Exímio guitarrista, fora aprendiz, desde os 11 anos, do luthier e maestro Luigi Mozzani, com quem permaneceu até 1926, quando concluiu o curso do Conservatório de Siena. Após trocar a luthieria por uma prolífica carreira de concertista, mudou-se para Londres, na Inglaterra, em 1929. Passou a dar aulas de guitarra, até que seus desenhos inovadores chamaram a atenção de revendedores dos instrumentos de sopro do francês Henri Selmer.

Verificadas em Siena e com Mozzani as sólidas credencias de Macaferri como luthier e músico, Selmer aceitou produzir uma linha de instrumentos de cordas com os planos apresentados pelo italiano. O atelier foi instalado na pequena cidade francesa para servir de base de operações.


O "aprimoramento para violinos, guitarras, bandolins e outros instrumentos de cordas" foi registrado em 6 de maio de 1932 na patente #736.779, segundo o luthier e pesquisador Paul Hostetter. O equipamento, batizado "ressonador interno", acabou não vingando, por motivos não muito claros. Hostetter argumenta que podem ter sido retirados porque falhas na instalação faziam com quem se soltassem e provocassem zumbidos indesejáveis.

Do outro lado do mundo, nos Estados Unidos da América, outras ideias, mais avançadas que as do italiano eram colocadas em prática para tentar chegar a uma guitarra de volume elevado sem perder o tom agradável. Quem mais se aproximava dos conceitos do italiano era o imigrante iugoslavo John Dopyera, herdeiro de uma longa tradição familiar de lutheria de violinos, que empregava cones de alumínio no interior do corpo de suas guitarras.

Em 1933, Macaferri deixou a companhia de Selmer, com a linha de guitarras plenamente operacional. Voltou a atuar como concertista pela Europa, enquanto os artesãos convocados pelo francês retocavam outros pontos do projeto.




Uma das inovações que os projetistas de Selmer julgaram melhor manter foi a escavação na parte inferior dianteira do tampo do instrumento, que permitia acesso fácil às casas mais agudas. A escavação, que seria depois incorporada aos modelos mais modernos em todo o mundo, começava na 12 casa e ia até a 15 casa. A escala terminava, já flutuando sobre a abertura do som, na 24 casa.

O formato da abertura era outra novidade interessante, mas que não sobreviveu. Em vez do círculo preconizado por Tarrega, Macaferri desenhou-a em forma de 'D', que ficou conhecida como grand bouche (grande boca). A equipe de Selmer transformou a abertura em oval, petite bouche (pequena boca), e eliminou a escala flutuante.




Django, seu irmão Joseph Nin-nin Reinhardt e os primos Pierre Baro Ferret e Eugene Ninine Vées usaram o modelo de Macaferri nas primeiras aparições do Quintette, em 1935. Depois, Django gravitou para o "modéle Jazz" petite bouche finalizado por Selmer, enquanto os responsáveis pelas guitarras rítmicas se mantiveram com as grand bouche.



A Selmer #503 chegou ao Musée Instrumental de Nice, onde permanece sob o número de inventário E.964.5.1, por doação, em 5 de novembro de 1964 - segundo especialistas, pela viúva de Django, Naguine. Fabricada em 1940, acompanhou o cigano por 13 anos. Foi, provavelmente, a que mais ficou em seu poder.

O criador do instrumento morreu em maio de 1992, 40 anos depois do artista responsável por sua popularização, mas nunca o ouviu tocar.

O relâmpago de três dedos

Django nos EUA, em 1946. Crédito: William Gottlieb/DownBeat

por Marcio Beck

São raros os vídeos que mostram Django Reinhardt no exercício da atividade principal de seus 43 anos de vida - ou seja, tocando guitarra. Destes, apenas um possui som sincronizado. Fotos não faltam, ainda que as de sua infância e juventude sejam escassas. Após se tornar ídolo do poeta Jean Cocteau, o guitarrista cigano brilhou na Paris dos anos 1930 e 1940; sua imagem ganhou o mundo. Apesar de depoimentos que o descrevem como ligeiramente distante, está quase sempre sorridente ou concentrado, tocando.

William Gottlieb e sua câmera, em julho de 1997. Crédito: John Higgis, Library of Congress Bulletin As mais famosas foram feitas pelo colunista da DownBeat William Gottlieb, durante a turnê nos EUA com Duke Ellington, em 1946. As imagens marcaram Gottlieb, cujo tesouro em forma de mil registros dos principais artistas de jazz do país entre 1938 e 1948, entregue à Biblioteca do Congresso dos EUA, somam 1,6 mil negativos e transparências coloridas, 54 quadros de exibição emoldurados, 950 impressões de referências e os contatos correspondentes.

A mão esquerda desfigurada, claro, foi o que mais atraiu a atenção do fotógrafo. Naquelas em que o guitarrista aparece empunhando o instrumento, é possível ver em detalhes como a pele das costas da mão era repuxada para o centro, causando o deslocamento para trás dos dedos anular e mínimo e impedindo grande parte da movimentação. Os vídeos, por sua vez, revelam que ele fazia uso adaptado destes. Funcionavam como um terceiro dedo"; movia-os conjuntamente, prendendo as cordas inferiores, mais agudas, na mesma altura do braço da guitarra.

Quando fotografou o guitarrista cigano francês (sic) Jean-Baptiste "Django" Reinhardt, a quem não conhecia bem, o sr. Gottlieb fixou na mão de Reinhardt desfigurada por um acidente. "Ele não sabia o que estava fazendo", disse o sr. Gottlieb, "mas eu sabia o que eu estava fazendo. Não era tão sutil quanto tentar capturar a emoção de Billie Holliday" ele disse, acrescentando que suas fotografias vão da apelação - a mão de Reinhardt - à expressão sutil - Holliday cantando**.

Croqui: Roger Baxter

Depois que o Quintette du Hot Club de France (QHCF) se tornou sucesso na Europa - conquistando público apaixonado não só França e Inglaterra, mas nos países Baixos e na Escandinávia - as lentes passaram a persegui-lo.

Não era bonito, para os padrões da época; creio que nem para os atuais. O rosto era ovalado, e os olhos tinham um certo ar de peixe morto. Completava a figura o bigodinho fino típico da época, também adotado por seus entusiastas até os dias de hoje. Mesmo assim, fotos suas chegaram a ser produzidas em série e vendidas aos fãs, como as dos artistas americanos e os maiores artistas franceses: "o astro dos discos 'swing'", afirmava a legenda.

A semelhança dos adeptos do gypsy jazz com o santo patrono do estilo chega a tais pontos que, em meados de 2000, um ano e meio após ter iniciado minha pesquisa, fui apresentado ao documentário Latcho drom, sobre música cigana, e passei um bom tempo supondo que Tchavolo Schmitt era Django. Ele aparece na cena filmada na França, na procissão anual realizada em homenagem a Santa Sara, alvo de devoção dos ciganos de todo o mundo.



Ao contrário do que se possa pensar, não escondia a mão esquerda defeituosa nas fotos. Nem podia, já que na grande maioria aparece tocando. Mesmo nas que está posando, no entanto, como nas que fez com Duke Ellington, ou em uma que aparece "lendo" a revista DownBeat, parecia não sentir necessidade de tal coisa. Apesar de terrivelmente desfigurada, sua mão esquerda era, antes de mais nada, a própria fonte da lenda.

Crédito: n/d

Numa das primeiras fotos que publicou do cigano, a DownBeat mostrou-o ao lado da esposa, Naguine (Sophie Irma Ziegler) e do então empresário, Charles Delaunay. Na legenda, além do elogioso epíteto de "colossal", o texto traz o "aviso" sobre a deformidade física que o tornara lendário: "Repare os dedos mínimos da mão esquerda - eles permanecem desse jeito o tempo todo").






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* Gottlieb and the Golden Age of Jazz - Photographer Lives on Through Library Collection, Erin Allen, Library of Congress Information Bulletin (Junho de 2006)

** Library Acquires Photos by William P. Gottlieb, Will Dalrymple. Library of Congress Information Bulletin (2/10/1995). Tradução Marcio Beck.