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quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O relâmpago de três dedos

Django nos EUA, em 1946. Crédito: William Gottlieb/DownBeat

por Marcio Beck

São raros os vídeos que mostram Django Reinhardt no exercício da atividade principal de seus 43 anos de vida - ou seja, tocando guitarra. Destes, apenas um possui som sincronizado. Fotos não faltam, ainda que as de sua infância e juventude sejam escassas. Após se tornar ídolo do poeta Jean Cocteau, o guitarrista cigano brilhou na Paris dos anos 1930 e 1940; sua imagem ganhou o mundo. Apesar de depoimentos que o descrevem como ligeiramente distante, está quase sempre sorridente ou concentrado, tocando.

William Gottlieb e sua câmera, em julho de 1997. Crédito: John Higgis, Library of Congress Bulletin As mais famosas foram feitas pelo colunista da DownBeat William Gottlieb, durante a turnê nos EUA com Duke Ellington, em 1946. As imagens marcaram Gottlieb, cujo tesouro em forma de mil registros dos principais artistas de jazz do país entre 1938 e 1948, entregue à Biblioteca do Congresso dos EUA, somam 1,6 mil negativos e transparências coloridas, 54 quadros de exibição emoldurados, 950 impressões de referências e os contatos correspondentes.

A mão esquerda desfigurada, claro, foi o que mais atraiu a atenção do fotógrafo. Naquelas em que o guitarrista aparece empunhando o instrumento, é possível ver em detalhes como a pele das costas da mão era repuxada para o centro, causando o deslocamento para trás dos dedos anular e mínimo e impedindo grande parte da movimentação. Os vídeos, por sua vez, revelam que ele fazia uso adaptado destes. Funcionavam como um terceiro dedo"; movia-os conjuntamente, prendendo as cordas inferiores, mais agudas, na mesma altura do braço da guitarra.

Quando fotografou o guitarrista cigano francês (sic) Jean-Baptiste "Django" Reinhardt, a quem não conhecia bem, o sr. Gottlieb fixou na mão de Reinhardt desfigurada por um acidente. "Ele não sabia o que estava fazendo", disse o sr. Gottlieb, "mas eu sabia o que eu estava fazendo. Não era tão sutil quanto tentar capturar a emoção de Billie Holliday" ele disse, acrescentando que suas fotografias vão da apelação - a mão de Reinhardt - à expressão sutil - Holliday cantando**.

Croqui: Roger Baxter

Depois que o Quintette du Hot Club de France (QHCF) se tornou sucesso na Europa - conquistando público apaixonado não só França e Inglaterra, mas nos países Baixos e na Escandinávia - as lentes passaram a persegui-lo.

Não era bonito, para os padrões da época; creio que nem para os atuais. O rosto era ovalado, e os olhos tinham um certo ar de peixe morto. Completava a figura o bigodinho fino típico da época, também adotado por seus entusiastas até os dias de hoje. Mesmo assim, fotos suas chegaram a ser produzidas em série e vendidas aos fãs, como as dos artistas americanos e os maiores artistas franceses: "o astro dos discos 'swing'", afirmava a legenda.

A semelhança dos adeptos do gypsy jazz com o santo patrono do estilo chega a tais pontos que, em meados de 2000, um ano e meio após ter iniciado minha pesquisa, fui apresentado ao documentário Latcho drom, sobre música cigana, e passei um bom tempo supondo que Tchavolo Schmitt era Django. Ele aparece na cena filmada na França, na procissão anual realizada em homenagem a Santa Sara, alvo de devoção dos ciganos de todo o mundo.



Ao contrário do que se possa pensar, não escondia a mão esquerda defeituosa nas fotos. Nem podia, já que na grande maioria aparece tocando. Mesmo nas que está posando, no entanto, como nas que fez com Duke Ellington, ou em uma que aparece "lendo" a revista DownBeat, parecia não sentir necessidade de tal coisa. Apesar de terrivelmente desfigurada, sua mão esquerda era, antes de mais nada, a própria fonte da lenda.

Crédito: n/d

Numa das primeiras fotos que publicou do cigano, a DownBeat mostrou-o ao lado da esposa, Naguine (Sophie Irma Ziegler) e do então empresário, Charles Delaunay. Na legenda, além do elogioso epíteto de "colossal", o texto traz o "aviso" sobre a deformidade física que o tornara lendário: "Repare os dedos mínimos da mão esquerda - eles permanecem desse jeito o tempo todo").






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* Gottlieb and the Golden Age of Jazz - Photographer Lives on Through Library Collection, Erin Allen, Library of Congress Information Bulletin (Junho de 2006)

** Library Acquires Photos by William P. Gottlieb, Will Dalrymple. Library of Congress Information Bulletin (2/10/1995). Tradução Marcio Beck.