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domingo, 1 de novembro de 2009

Um pouquinho de Brésil

por Marcio Beck

Encontrar laços entre Django Reinhardt e o Brasil não requer grandes esforços.

O primeiro e mais significativo são as gravações pioneiras em ritmo de jazz de uma música muito cara aos tupiniquins. É um animado e lânguido tema intitulado simplesmente Brazil, que nada mais é que a imortal Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Compositor e intérprete prolífico, com mais de 800 gravações em 25 anos de carreira, Django fez mais de uma gravação de muitos temas – a maioria próprios ou standards consagrados nos Estados Unidos.

A música, escrita em 1939 e lançada no ano seguinte, tornara-se símbolo internacional da brasilidade em 1942, ao ser incluída no filme Saludo amigos, da Disney – basicamente, uma peça de animação infanto-juvenil da campanha dos EUA para atrair a simpatia sulamericana, no contexto da Segunda Guerra, enquanto o Brasil e outros países hermanos pendiam para o Eixo. É o filme que introduz o Zé Carioca, personagem criado especialmente para cimentar as relações, ao mesmo tempo o estereótipo do brasileiro que perdura até hoje no exterior: esperto, malandro e preguiçoso.

No filme da Disney, Aquarela era cantada em português, na voz de Aloysio de Oliveira. Só em 1957, uma década depois da primeira gravação de Django, Sidney Keith ‘Bob’ Russell verteu a letra para o inglês. Caberia a Francis Albert Sinatra registrar primeiro a versão, no disco Come fly with me. Porta aberta por The Voice Sinatra, todo crooner e líder de big band que se preza fez a sua: Bing Crosby (1958), Ray Conniff (1960) e Paul Anka (1963), só para citar alguns. Um dos principais “herdeiros” de Django, Chet Atkins, fez sua versão instrumental em 1976.

Brazil aparece pela primeira vez nos registros gravados de Django em 18 de julho de 1947, numa sessão para o selo parisiense Blue Star. Acompanhado do parceiro pós-Grappelli, Hubert Rostaing, na clarineta, o irmão, Joseph, na guitarra, o fiel escudeiro Emmanuel Soudieux no baixo e André Jourdan, outro do noveau quintette, na bateria, gravou o hino oficioso do país, junto com September song, I'll never smile again, New York city, Django's blues, Love's mood e I love you.

De volta à França após meses nos EUA, seguidos à turnê com Duke Ellington, Django adotara a guitarra eletrificada. Com a sustentação das notas garantida sem maiores esforços, os solos de Brazil são aulas de leveza, comparada à técnica bruta que o consagrara nas casas de dança da Rue Pigalle. Na terra do jazz, virou-se com uma eletroacústica Zephyr, que segundo o guia e tradutor de Django na viagem, o guitarrista ítaloamericano Joe Sinacore, foi doada pela Epiphone Company, em uma visita deles à fábrica na Rua 14 Oeste de Nova York. Em Paris, voltou à sua amada Selmer-Macaferri, agora com um captador elétrico instalado na abertura do tampo.

Django repetiu a dose nos estúdios da Radio Audizione Italiana (RAI), em Roma, no início de 1949, ao lado do eterno parceiro Stephane Grappelli. Foi acompanhado apenas pelo pianista Gianni Safred, o baixista Marco Pecori e o baterista Aurelio de Carolis em sessões que se estenderam por janeiro e fevereiro e renderam 67 temas, incluindo clássicos como Night and Day, Stormy weather e What a difference a day made.

A terceira e última veio na penúltima sessão de gravação do guitarrista, em 10 de março de 1953, dois meses antes de sua morte. Já adepto do minimalismo nas seções rítmicas, usava a mesma base de piano, baixo e bateria, mas com os franceses Maurice Vander, Pierre Michelot e Jean Louis Viale, respectivamente, substituindo Safred, Pecori e De Carolis.

A segunda ligação diz respeito a Grappelli. Conta seu biógrafo, Steve Balmer, que nos anos 1920, antes de sequer conhecer Django ou pertencer à lendária formação do Quintette du Hot Club de France, o pianista e violinista engajou-se na trupe comandada pelo inusitado showman armênio Krikor Kelekian, que se apresentava como Grégor. Faziam um espetáculo cômico classificado pelo líder como opera jazz. Na prática, muito pouco do que se entendia por jazz nos EUA na mesma época. Em outubro de 1930, Gregor e seus Gregorianos embarcaram no vapor Alcantara para uma travessia de 17 dias até a América do Sul, então uma terra distante e misteriosa para a imensa maioria dos europeus não ibéricos. Passaram por Buenos Aires, na Argentina, e chegaram ao Brasil:

Ao chegar primeiro na capital brasileira do Rio de Janeiro, Stéphane testemunhou o trabalho de engenharia na imponente estátua do Cristo, de Paul Lewandowski que estava começando a se erguer sobre o porto. Mais importante, Stéphane se tornou um dos primeiros europeus a ouvir o autêntico samba. Que experiência para um garoto do vilarejo de Montmartre, ouvir esta exótica mistura do ritmo africano, fado português e da exótica alma amazônica.

À parte o entusiasmo levemente equivocado e fixado no “exotismo”, Balmer não superestimou o impacto da experiência em Grappelli, que caiu de amores pelos ritmos brasileiros. O violinista gravou o disco La grande reunion, em 1975, com um dos maiores guitarristas de todos os tempos, o brasileiro Baden Powell de Aquino. Acompanhados por Guy Pedersen (baixo), Clément de Waleyne e Jorge Rezende (percussão) e Pierre-Alain Dahan (bateria), Grappelli e Baden gravaram para a francesa Disques Festival Eu vim da Bahia, Meditação, Berimbau, Desafinado, Samba de uma nota, Isaura, Amor em paz e Brazil.

La grande reunion, 1975, Festival Disques

Em 1988, Grappelli veio pela segunda vez ao Brasil, para se apresentar no Free Jazz Festival. Rendeu uma bela entrevista a Fritz Utzeri, apropriadamente intitulada “O gigante do violino”, publicada na edição de 1º de setembro daquele ano. Grappelli afirmou que chegou a tocar piano no antigo Cinema Odeon, que à época exibia filmes mudos – afirmação difícil de confirmar, mas aceita pelo mestre jornalista no mínimo como licença poética.

Desde o final da década de 60, Grapelli tomou contato com a bossa nova e até em seu último LP, All of me, há várias faixas com uma marcação rítmica inconfundivelmente brasileira. “Eu gosto muito da música brasileira. Quando ouvi pela primeira vez a a bossa nova fiquei encantado. Não tive oportunidade de fazer muita coisa nesse terreno, salvo um disco com Baden Powell, e nem sei o que foi feito desse disco”, diz.

Grapelli conta sua turnê pelo Brasil nos anos 30 com a Orquestra Gregor. “Nós saímos de Cherburgo de navio e levamos 17 [ara chegar à nossa primeira escala: Pernambuco. Eu conheço Pernambuco devido a uma razão particular: é de lá que sai a madeira para fazer os bons arcos de violino. Soube disso por um mestre na fabricação de arcos, uma autoridade mundial que recentemente disse-me que a fabricação torna-se problemática porque a madeira está ficando rara devido à devastação. Por que vocês fazem isso?”

No Rio, foi contratado para tocar no Odeon. “Eu me lembro onde estava e reconheceria a praia ainda hoje”, diz, sem saber que o mar está longe. “Ficamos num hotel ao lado (ele não lembra o nome, mas era provavelmente o Serrador) e eu estava espantado porque era a primeira vez que eu via um prédio de 14 andares, não havia isso em Paris”. Grapelli tocou em fazendas no interior e em Santos e São Paulo, “que era uma cidade pequena naquele tempo. Os concertos enchiam, tudo o que vinha de Paris era novidade e bem recebido”. Eles já tocavam jazz. “Imagine que outro dia vi no cinema Cantando na chuva, mas a gente já tocava isso naquela época. Nós tocávamos música americana, Tea for two, essas coisas”.

Por fim, há o amigo e rival Oscar Alemán, meio índio argentino criado nas ruas do porto de Santos, onde aprendeu tocar cavaquinho ainda criança, ganhando trocados para sobreviver. Órfão de pai aos 11 anos, abandonado pelos irmãos não muito mais velhos e sem condições de viajar de volta para a família na planície do Chaco, Alemán foi adotado por um guitarrista brasileiro chamado Gastón Bueno Lobo. Com a dupla intitulada Los Lobos, viajaram pela Europa como “guitarristas havaianos”.



Lá, Alemán acabou se estabelecendo, enquanto o parceiro voltou ao Brasil. Alemán carregou consigo o repertório de sambas e outros ritmos ditos exóticos, cujos elementos foi provavelmente o primeiro a infundir no jazz. Falava português com pouco sotaque, pelo que se pode perceber em suas gravações. Chegou a gravar, nas décadas de 1940 e 1950, temas como Negra do cabelo duro (cantando) e uma versão (ainda mais) acelerada de Tico tico no fubá.

Por mais que Alemán possa ter aprofundado o contato de Django com a idéia de que havia sons estranhos naquela região “exótica e misteriosa”, é tentador demais creditar à amizade/rivalidade dos dois as gravações de Aquarela do Brasil por Django. Alemán havia retornado à Argentina, por causa da perseguição nazista, em 1939, e Ari Barroso só registrou sua famosa canção dois anos depois. Os biógrafos estrangeiros de Django – principalmente canadenses e franceses – são omissos a respeito, o que não é de se estranhar. Três gravações são uma mísera porção de sua prolífica obra completa.

Em tempo: suspeito de Grappelli.