domingo, 27 de abril de 2008
O fogo criou um gênio
por Marcio Beck
O incêndio na caravana de Jean Django Reinhardt e Florine Bella Mayer, sua primeira esposa, na madrugada de 26 de outubro de 1928, interrompeu bruscamente o que já prenunciava ser uma carreira sólida de guitarrista. Desde abril, Django vinha gravando regularmente, acompanhando os acordeonistas Jean Vaissade e Maurice Alexander.
O repertório não passava sequer perto do jazz que conhecera na Rua Pigalle, assistindo a Billy Arnold's Novelty Jazz Band tocar no restaurante Abbayè de Thélème. Eram fox trots (Ma regulière, Au pays de l'Hindoustan), valsas (Amour de Gitane, Griserie) e até uma "marcha americana" (Miss Columbia).
Foram cinco sessões de gravação, total de 17 músicas, em cerca de seis meses. Dada a precariedade sistemas de gravação à época. Mesmo sendo relegado a um papel de menor destaque na música, Django se sobressaía com a criatividade das frases e a velocidade impressionante na digitação das notas, fruto da prática contínua desde os 9 anos.
O banjoísta/guitarrista prodígio chamara a atenção do bem-sucedido band leader inglês Jack Hylton. Segundo o pesquisador Michel Dregni, horas antes do incêndio, Hylton fora à boîte La Java, onde Django apresentava-se com Maurice Alexander num baile de musette (música dançante típica da época na França), e o convidara a se juntar à banda.
Os principais biógrafos divergem quanto aos detalhes. Charles Delaunay afirma que Django teria acordado no meio da noite, sobressaltado com o barulho provocado por um rato, e derrubado uma vela. Michel Dregni atribui o incidente a Bella. De qualquer forma, Django usou a mão esquerda para segurar um cobertor e proteger a esposa, grávida de nove meses, até saírem do inferno repentino que se tornara a carroça.
Como resultado, a mão ficou severamente queimada e só foi salva graças a uma operação realizada em clínica particular, paga pelos sogros, em 23 de janeiro de 1929 – seu 19º aniversário. A perna esquerda e o lado esquerdo do tórax também apresentavam danos sérios pelo fogo, e ficariam cobertos de cicatrizes.
No Hôpital Lariboisière – curiosamente, o mesmo onde nasceu o parceiro violinista Stéphane Grapelli –, em que foi admitido como paciente nº 18763, queriam acabar com os problemas da maneira mais simples: amputando. A recuperação ao nível funcional da mão, com as novas restrições que foram impostas pelos danos aos tendões e músculos, só ocorreu em fins de 1930.
Nesse meio tempo, foi abandonado por Bella, que levou o filho recém-nascido do casal, Henri. Reencontrou-se com a paixão do início da adolescência, Sophie Irma Naguine Ziegler, com quem foi morar. Django voltaria a gravar no ano seguinte, com o acordeonista e baixista Louis Vola e sua Orquestra do Lido de Toulon, cidade para a qual os irmãos Reinhardt haviam viajado em busca de novos ares.
Mesmo já tendo sido devidamente apresentado ao jazz pelo poeta e pintor Émile Savitry – que mostrara a ele e ao irmão, Joseph Nin-nin Reinhardt, discos de Duke Ellington e Louis Armstrong – Django gravaria ainda mais valsas e tangos antes de embarcar, em 1934, na aventura dos playboys parisienses Charles Delaunay, Hughes Panassiè, Jacques Bureau e Pierre Nourry: o Quinteto do Hot Club da França.
As gravações, em números
1928 - 17 temas em 5 sessões
1931 - 3 temas em 1 sessão
1932 - 11 temas em 5 sessões
1933 - 43 temas em 15 sessões
1934 - 88 temas em 32 sessões
1935 - 33 temas em 8 sessões
1936 - 94 temas em 20 sessões
1937 - 58 temas em 15 sessões
1938 - 45 temas em 7 sessões
1940 - 74 temas em 15 sessões
1941 - 8 temas em 3 sessões
1942 - 21 temas em 6 sessões
1943 - 17 temas em 5 sessões
1944 - 3 temas em 2 sessões
1945 - 18 temas em 5 sessões
1946 - 17 temas em 4 sessões
1947 - 91 temas em 16 sessões
1948 - 22 temas em 4 sessões
1949 - 70 temas em 2 sessões
1950 - 32 temas em 2 sessões
1951 - 16 temas em 5 sessões
1952 - 8 temas em 2 sessões
1953 - 20 temas em 4 sessões
TOTAL: 809 temas em 183 sessões
1931 - 3 temas em 1 sessão
1932 - 11 temas em 5 sessões
1933 - 43 temas em 15 sessões
1934 - 88 temas em 32 sessões
1935 - 33 temas em 8 sessões
1936 - 94 temas em 20 sessões
1937 - 58 temas em 15 sessões
1938 - 45 temas em 7 sessões
1940 - 74 temas em 15 sessões
1941 - 8 temas em 3 sessões
1942 - 21 temas em 6 sessões
1943 - 17 temas em 5 sessões
1944 - 3 temas em 2 sessões
1945 - 18 temas em 5 sessões
1946 - 17 temas em 4 sessões
1947 - 91 temas em 16 sessões
1948 - 22 temas em 4 sessões
1949 - 70 temas em 2 sessões
1950 - 32 temas em 2 sessões
1951 - 16 temas em 5 sessões
1952 - 8 temas em 2 sessões
1953 - 20 temas em 4 sessões
TOTAL: 809 temas em 183 sessões
Estilos regionais do jazz cigano
Os ciganos do Sul da França eram talvez um pouco menos nomâdicos, e seus estilos refletem suas outras influências regionais, incluindo música da Córsega e outras regiões mediterrâneas. Os estilo Parisiense começou como jazz de certos ingredientes locais adicionados pelos muitos capazes guitarristas da cidade. Portanto, o estilo de Paris é o mais diverso tanto no próprio estilo da guitarra quanto em repertório. A linha comum é a guitarra acústica à la Django, sempre tocada com perfeita técnica, e a singular habilidade cigana de colocar aquele certo dó-ré-mi em qualquer tipo de música que toquem.
O estilo Alsaciano é marcado por sua batida (pompe) rítmica percussiva, onde a tonalidade do próximo acorde é mais forte bem na passagem do acorde. Também é conhecido pela intensidade. Muitos dos solistas alsacianos tem um tom forte, que "morde". Alguns, como Tchavolo Schmitt, tocam com total desapego; outros, como Biréli Lagrène, tocam com uma ferocidade mais controlada. De qualquer modo, o som é confiante e para frente. Este é consideravelmente diferente do estilo Belga-holandês, onde a maneira de tocar é mais lânguida - se é que se pode usar essa palavra quando se está falando de jazz Cigano.
O estilo Mediterrâneo é uma alegre mistura do estilo Django e música Latina, em particular, música Corsa. Está praticamente extinto hoje em dia. Os guitarristas que o desenvolveram - Bousquet e Tchan-Tchou - estão mortos. O estilo é exuberante e fogosamente rápido.
Estes guitarristas tinham um "toque" diferente na guitarra: Bousquet era mais leve; Tchan Tchou mais forte. Bousquet tinha uma velocidade incrível; Tchan-Tchou, uma técnica infalível. O repertório incluía standards de jazz, bossas, valsas, e vários tipos de música mediterrânea. Bousquet gravou com uma variedade de cantores corsos, e há filmagem dele tocando alguma impressionante música mediterrânea com seu aprendiz, Moréno Winterstein. Moréno é mais do que capaz de tocar no estilo de seu mestre - ele pode ser o único hoje em dia que consegue. Mas para o talentosíssimo Moréno, é apenas um estilo que ele dominou. Há aqueles guitarristas que podem tocar os solos de Bousquet, mas não soam como Bousquet.
Paris é o lar do jazz Cigano e o lugar onde as próprias influências de Django - jazz americano e o bal musette - ainda são fortemente sentidas. As coisas que influenciaram Django ainda estão ajudando a guiar os guitarristas parisienses de hoje. No entanto, Paris é também o lugar em que a influência de Django como guitarrista é a mais fraca. Por que? Porque quando Django morreu, em 1953, não havia um interesse particular de outros guitarristas em levar adiante seu legado. Eles podiam ser influenciados por Django (entre outros), mas não se sentiam compelidos a segui-lo. Ao fim da guerra, guitarristas fortes como Sarane Ferret já estavam começando a abrir caminho para tocar seu próprio estilo de jazz de cordas parisiense. Guitarristas posteriores, como Henri Crolla e Christian Escoude inspiraram-se no grande cigano, mas seguiram resolutamente seu próprio caminho. Esta é a griffe do estilo Parisiense - seguir o próprio caminho.
É claro que sempre houve aqueles instrumentistas cujo estilo desafia qualquer categorização - Baro Ferret, Koen de Cauter, Francis-Alfred Moerman, para nomear alguns.
É uma grande parte do apelo e do charme do jazz Cigano - a maneira que se desenvolveu em muitas direções diferentes sem perder a visão de onde veio. Todo estilo tem algo para recomendá-lo. O gênio dos gigantes dos primórdios - os clãs Reinhardt e Ferret - garantiram uma base forte o suficiente para manter todos estes vários estilos regionais. Ainda assim, se o isolamento que ajudou a desenvolver esses estilos for diminuído, não significa que não haverá desenvolvimentos posteriores.
Há muitos guitarristas talentosos mundo afora tocando o jazz Cigano. Muitos deles farão contribuições a estes vários estilos regionais. Eles podem simplesmente não habitar a região em questão - ou mesmo o continente.
Scott Wise, in Django Reinhardt and The Illustrated History of Gypsy Jazz (p. 169-171). Speck Press; Denver, 2006.
O estilo Alsaciano é marcado por sua batida (pompe) rítmica percussiva, onde a tonalidade do próximo acorde é mais forte bem na passagem do acorde. Também é conhecido pela intensidade. Muitos dos solistas alsacianos tem um tom forte, que "morde". Alguns, como Tchavolo Schmitt, tocam com total desapego; outros, como Biréli Lagrène, tocam com uma ferocidade mais controlada. De qualquer modo, o som é confiante e para frente. Este é consideravelmente diferente do estilo Belga-holandês, onde a maneira de tocar é mais lânguida - se é que se pode usar essa palavra quando se está falando de jazz Cigano.
O estilo Mediterrâneo é uma alegre mistura do estilo Django e música Latina, em particular, música Corsa. Está praticamente extinto hoje em dia. Os guitarristas que o desenvolveram - Bousquet e Tchan-Tchou - estão mortos. O estilo é exuberante e fogosamente rápido.
Estes guitarristas tinham um "toque" diferente na guitarra: Bousquet era mais leve; Tchan Tchou mais forte. Bousquet tinha uma velocidade incrível; Tchan-Tchou, uma técnica infalível. O repertório incluía standards de jazz, bossas, valsas, e vários tipos de música mediterrânea. Bousquet gravou com uma variedade de cantores corsos, e há filmagem dele tocando alguma impressionante música mediterrânea com seu aprendiz, Moréno Winterstein. Moréno é mais do que capaz de tocar no estilo de seu mestre - ele pode ser o único hoje em dia que consegue. Mas para o talentosíssimo Moréno, é apenas um estilo que ele dominou. Há aqueles guitarristas que podem tocar os solos de Bousquet, mas não soam como Bousquet.
Paris é o lar do jazz Cigano e o lugar onde as próprias influências de Django - jazz americano e o bal musette - ainda são fortemente sentidas. As coisas que influenciaram Django ainda estão ajudando a guiar os guitarristas parisienses de hoje. No entanto, Paris é também o lugar em que a influência de Django como guitarrista é a mais fraca. Por que? Porque quando Django morreu, em 1953, não havia um interesse particular de outros guitarristas em levar adiante seu legado. Eles podiam ser influenciados por Django (entre outros), mas não se sentiam compelidos a segui-lo. Ao fim da guerra, guitarristas fortes como Sarane Ferret já estavam começando a abrir caminho para tocar seu próprio estilo de jazz de cordas parisiense. Guitarristas posteriores, como Henri Crolla e Christian Escoude inspiraram-se no grande cigano, mas seguiram resolutamente seu próprio caminho. Esta é a griffe do estilo Parisiense - seguir o próprio caminho.
É claro que sempre houve aqueles instrumentistas cujo estilo desafia qualquer categorização - Baro Ferret, Koen de Cauter, Francis-Alfred Moerman, para nomear alguns.
É uma grande parte do apelo e do charme do jazz Cigano - a maneira que se desenvolveu em muitas direções diferentes sem perder a visão de onde veio. Todo estilo tem algo para recomendá-lo. O gênio dos gigantes dos primórdios - os clãs Reinhardt e Ferret - garantiram uma base forte o suficiente para manter todos estes vários estilos regionais. Ainda assim, se o isolamento que ajudou a desenvolver esses estilos for diminuído, não significa que não haverá desenvolvimentos posteriores.
Há muitos guitarristas talentosos mundo afora tocando o jazz Cigano. Muitos deles farão contribuições a estes vários estilos regionais. Eles podem simplesmente não habitar a região em questão - ou mesmo o continente.
Scott Wise, in Django Reinhardt and The Illustrated History of Gypsy Jazz (p. 169-171). Speck Press; Denver, 2006.
O jazz em França
Porque é que a França forneceu tão grande número de bons músicos de jazz? - Antes da guerra: Alix Combelle, Django Reinhardt, Stéphane Grapelly - O Harlem em Montmartre - Depois da guerra: Nova Orleães em Saint-Germain-des-Prés - Guy Longnon, Claude Bolling André Persiany, Guy Lafite.
(…) O caso de Django Reinhardt é muito diferente, e é sem dúvida excepcional. Se o consideramos como um músico francês é porque a sua carreira toda se fez quase inteiramente em França (só foi uma vez aos Estados Unidos). Mas Django nasceu numa roulotte na Bélgica, em 23 de janeiro de 1910, era de origem cigana, e esta raça misteriosa tem algumas afinidades com a raça negra, não só pelos seus dons musicais, como pelo desprezo pelo que será o dia seguinte e pelo gosto por uma vida liberta das convenções correntes.
Ainda muito novo, Django Reinhardt começou por aprender violino; depois, sendo atraído pela viola, tornou-se um virtuose deste instrumento, de tal modo que os ciganos tinham por hábito ir ouvi-lo à porta de sua roullote, instalada às portas de Paris. Um terrível acidente esteve quase a acabar prematuramente com a sua carreira: um dia, quando dormia, pegou-se fogo à roullote e ficou com o corpo horrivelmente queimado. Conseguiu salvar-se, mas perdeu completamente a possibilidade de mexer dois dedos: o anelar e o dedo mínimo da mão esquerda - aquela que usam os violas para modificar a tensão das cordas, e, portanto, os sons.
Django ficou perto de seis meses sem poder tocar violão. Posteriormente retomou-a, inventou um novo processo de dedilhar adaptando às possibilidades da sua mão atrofiada e voltou a tocar bem como dantes - quer dizer, com mais velocidade que qualquer outro violonista!
Nessa altura, tinha descoberto o Jazz e a sua enorme reputação atraiu a atenção dos músicos profissionais. Um deles, o sax-clarinetista André Ekyan, contratou-o para sua orquestra; para se assegurar de que Django cumpriria o contrato, Ekyan ia todos os dias buscá-lo à roulotte e levava-o a Paris.
Em 1934, Django Reinhardt e Stéphane Grapelly fundaram o Quinteto do Hot-Clube de França, que foi o primeiro conjunto de Jazz europeu de grande valor e o primeiro, na história do Jazz, composto unicamente por instrumentos de corda: a viola de Django, o violino de Grapelly, um contrabaixo e duas violas de acompanhamento. O êxito do Quinteto foi considerável, tanto junto do grande público quanto dos amadores de Jazz. O primeiro ficou agradavelmente surpreso por ouvir uma orquestra de Jazz pouco barulhenta, cuja sonoridade não chocava o ouvido tanto como a dos grandes conjuntos onde predominavam os metais; os segundos encontraram no arco de Grapelly frases concisas e bem “swingadas”, inspiradas nas de Louis Armstrong, enquanto Django conseguia, ora um suporte rítmico suave e poderoso, ora solos de uma verve inventiva extraordinária, com desenvolvimentos tão lógicos e imprevistos quanto os de um Benny Carter ou de um Coleman Hawkins.
Django era ao mesmo tempo um virtuose inigualável, um acompanhador sem par e um improvisador prodigioso. A plenitude de sua música, o seu swing e a solidez do seu temperamento permitiam-lhe substituir sozinho toda a secção rítmica, incluindo a bateria. Pode-se verificar isto ouvindo os discos que gravou, em 1939, com Rex Stewart e dois outros músicos da orquestra de Duke Ellington, discos em que não se sente nunca a falta da bateria. É de nota que Django suscitou o entusiasmo de todos os músicos negros que tiveram ocasião de o ouvir, ou, melhor de tocar com ele, e dos maiores, como Eddie South, Dicky Wells, Rex Stewart, Coleman Hawkins e Benny Carter.
Improvisador, a abundância das suas idéias parecia inesgotável. De princípio, o seu estilo tinha umas ligeiras influências ciganas, mas muito rapidamente passou a exprimir-se na mais pura linguagem do Jazz, imprimindo-lhe sempre a sua marca própria, tão original. Por fim, foi um admirável compositor, não no sentido clássico do termo, visto que não sabia ler nem escrever música, mas como criador de melodias maravilhosas (e mesmo arranjos), que ditava tocando-as à viola.
Na sua maneira de viver, Django usava da mesma saborosa fantasia que na sua música. Desinteressado, não tendo nenhum cuidado de “fazer carreira”, chegou a romper contratos dos mais lucrativos simplesmente porque estava bom tempo e gostava mais de respirar ar puro, ver as árvores e os regatos que de tocar na desagradável atmosfera dos cabarés.
Foi no campo que morreu, de uma crise cardíaca, a 16 de maio de 1953. Os seus discos, felizmente, ficaram, razão pela qual viverá enquanto houver sobre a Terra homens capazes de apreciar as maravilhas do seu talento espontâneo.
PANASSIÉ Hugues, in "História do verdadeiro Jazz".
Capítulo XIV (p. 227/230); Portugália Editora, Lisboa, 1966 (Tradução e notas de Raul Calado)
Original: Histoire du vrai Jazz, Éditions Robert Laffont, Paris
Palavra de Rei
Finalmente conseguimos instalar eletricidade em nossa casa em Indianola. Isso representou, para mim, principalmente, um rádio e um amplificador para a guitarra. O novo som de T-Bone não me saía da cabeça. Por mais que tentasse, não chegava nem perto dele. O mesmo acontecia com Django Reinhardt. Django era um guitarrista cigano belga que conhecia através de um colega do exército cujo navio tinha passado pela França; ele chegou dizendo que conhecera um músico fantástico. Esteve no Hot Club de Paris, onde Django estava se apresentando com o violinista Stephane Grapelli. Meu amigo trouxe alguns discos - aqueles 78 rotações grandes e fáceis de quebrar - embrulhados em papel de seda como se fossem jóias preciosas (e eram mesmo). Quando chegou no Mississippi, ele me mostrou. Eu não acreditei no que estava ouvindo.
Mais tarde, li que Django queimou dois dedos da mão esquerda em um incêndio de sua caravana. Esses dedos queimados se colaram no terceiro por uma membrana, de modo que lhe sobravam apenas dois dedos livres. As pessoas o chamavam de “Relâmpago de Três Dedos”, e era mesmo. Ele me pegou com a mesma força de Charlie Christian. Django era um mundo novo. Ele e Grapelli zuniam como demônios. A cadência era só o começo. As idéias de Django eram o que mais me surpreendia. Ele era livre, leve e veloz como o mais veloz dos trompetes, escorregadio como o mais liso dos clarinetes, corrias pelas cordas com a rapidez de um velocista e a imaginação de um poeta. Era ligeiro como um gato. Músicas como Nuages e Nocturne me tiravam da minha casa em Indiana e me transportavam pelo oceano até Paris, onde as pessoas bebiam vinho imersas no jazz mais romântico que este mundo já ouvira.
Eu amava a alegria e a leveza da música de Django sua liberdade de fazer o que sentia. Estava na cara que se tratava de um cigano. Sua guitarra era tremendamente sensual, sua atitude do tipo nada-pode-me-deter, inspiradora. Pouco me importava que fosse um milhão de vezes melhor do que eu tecnicamente. Sua música fortalecia uma idéia acariciada em meu coração - a guitarra é uma voz como outra qualquer. A guitarra é um milagre. As cordas e os trastos revelam a personalidade de um ser humano único, seja um cego do Texas ou um cigano da Bélgica.
KING, Riley B., em "B.B. King - Corpo e alma do Blues"
Cap. 9, "A cidade é como uma mulher" (p. 84/85)
Editora Ática, 1998
Uma noite para ficar na memória
"A 30 de janeiro de 1938, o Quinteto estreou com entusiástica acolhida no Teatro Cambridge de Londres. Semanas depois, os músicos dividiram os aplausos com Tom Mix, famoso ator do cinema mudo."
- Andrew Rust
por Marcio Beck
É uma noite que nunca vou esquecer. Suponho, agora quando olho para trás, que foi uma noite realmente histórica. Eu a adorei, mas gostaria de ter prestado mais atenção na época, para que pudesse me lembrar de mais.
A frase não é de um personagem particularmente famoso no mundo da música. Não é citação vinda artigo de crítico de música nem historiador do jazz. É a palavra de um simples senhor de 89 anos que presenciou, naquela noite de domingo, uma das inspiradas apresentações do Quinteto do Hot Club da França. Sidney Baxter, o espectador em questão, é pai de Roger Baxter, que se definia modestamente como "um guitarrista amador de pouco mais de 60 anos, inglês de Warwickshire". Conheci-o virtualmente em 2000, por meio da lista de discussão GypsyJazzGuitar, abrigada pelo Yahoogroups.
Participei do grupo por meses, como completo leigo tanto em jazz quanto em Django Reinhardt. Em uma das discussões da lista, no início de minhas pesquisas, em março de 2001, Roger mencionou que seu pai assistira a uma apresentação de Django com o Quinteto, na Inglaterra, no fim da década de 30. Enviei-lhe um e-mail particular pedindo o favor de transmitir ao pai algumas perguntas. A primeira resposta que recebi foi bastante rica, mas ainda abusei de sua boa vontade e solicitei detalhes, sendo também prontamente atendido.
Em 1938, quando viajou de trem por várias milhas – de Gravesend, Kent, até Londres – Sydney Baxter tinha 25 anos. A viagem, por si só, "já era uma aventura naquela época", lembra seu filho, e ele ainda levou a esposa Janet, seis anos mais nova, para assistir à apresentação. Mais de seis décadas após o show, sua primeira impressão, curiosamente, é sobre a aparência e a maneira como os integrantes do Quinteto se dispunham no palco, não sobre as músicas.
Eles usavam ternos e pareciam muito espertos. Stephane ficava de pé à esquerda e ocasionalmente vagava levemente em frente aos guitarristas quando ele estava tocando um solo. As três guitarras ficavam em linha, com a de Django apenas um pouquinho à frente das outras duas. O baixista, Louis Vola, ficava atrás dos guitarristas. Eles tocaram duas sessões. Acho que cada sessão deve ter durado cerca de meia hora, mas era tão divertido que se perdia a noção do tempo.
A abertura, ele tem quase certeza, foi Djangology, cartão de visitas do grupo. Seguiram-se outros temas mais comuns em seu repertório, como Night and day, Daphné, Sweet Georgia Brown e a estonteante Mistery Pacific. Completo o set inicial, passavam a atender os pedidos da platéia, quaisquer que fossem. E não eram poucos. Cada sessão, pelos cálculos do meu entrevistado virtual, deve ter durado cerca de 30 minutos.
Eles podiam tocar qualquer coisa que as pessoas pedissem. Django olharia para Stephane, talvez diria umas palavras, e então eles seguiriam. Faziam parecer tão fácil. O público não os deixava ir. Eles simplesmente ficavam gritando por mais e eles tocaram vários números. Foi um excelente concerto informal, cheio de gente que obviamente adorava o estilo de Django e Stephane. Era uma atmosfera bastante feliz, quase aconchegante. Os dois pareciam pessoas muito amigáveis.
Guitarristas de expressão da época, como Eddie Lang, Carl Kress e Dick McDonough eram seus ídolos, até conhecer a música do "cigano Reinhardt". Depois, admite Baxter, todos passaram soar ultrapassados.
NOVIDADE
Era algo completamente distinto do que estava disponível na época em um mundo onde os saxofones, trumpetes, clarinetas e trombones davam as cartas, amparados por baterias e pianos; à guitarra era reservado um papel de mera sustentação rítmica da melodia. Daí o impacto que um solista nato como o cigano belga causava. Django Reinhardt foi o primeiro entre os jazzistas a tornar o instrumento, como afirmou B.B. King, "uma voz como outra qualquer".
Na época, as coisas que ele fazia com a guitarra pareciam completamente impossíveis. Algumas pessoas pensavam que as gravações eram adulteradas de alguma forma; provavelmente aceleradas. E ele podia conseguir aqueles efeitos afinando a guitarra à sua maneira esquisita. Eu nunca tinha ouvido nada como aquela música antes. Era totalmente diferente. Django parecia ser simplesmente incrível e ninguém mais conseguia fazer coisa parecida com aquilo mesmo com todos os dedos.
Dizem os críticos e biógrafos que seu intenso magnetismo pessoal atraiu as atenções de artistas famosos na França. É uma das características mais exaltadas pelos que se dedicaram a escrever sobre ele, mesmo que nunca o tenham visto tocar. Sydney Baxter viu o seguinte:
A maior parte do tempo, Django ficava totalmente impassível. Parecia tocar como não houvesse mais ninguém além do Quinteto na sala. Não era como se fosse inamistoso, parecia uma pessoa afetuosa, mas estava simplesmente totalmente absorvido pela sua música. Parecia totalmente relaxado e dificilmente olhava para algo além da sua guitarra. Mas às vezes quando tocava algo realmente especial, olhava para a audiência dando uma piscadela, com um meio sorriso, como se a dizer ‘então, o que acharam disto?’. Ao fim de alguns números, quando a audiência estava gritando por mais, ele levantaria a cabeça e sorriria timidamente, obviamente satisfeito que tudo estivesse indo tão bem.
ADAPTAÇÃO
Não havia como deixar de notar, no entanto, a maneira diferente como o cigano era forçado a abordar a guitarra, diante da paralisia parcial de sua mão. Teve de criar uma série de recursos de digitação e adaptar outros já existentes.
Os dedos de Django pareciam flutuar sobre as cordas e quando ele estava tocando solos, seus dois dedos bons ficavam paralelos ao braço da guitarra, ao invés de transversais. Às vezes esses dois dedos se cruzavam de uma forma que é impossível fazer. Quando tocava acordes, ele de alguma forma grudaria seus dedos dobrados, aleijados, nas duas cordas menores, acho.
No e-mail, Roger abre parênteses para colocar em perspectiva o que ele acredita que seja um exagero do pai. Cita um anúncio da época para a gravadora Ultraphone publicado no livro Django's gypsies, de Ian Cruickshank, em que os dedos do guitarrista aparecem numa posição classificada por ele como inacreditável:
Meu pai insiste que Django cruzava de verdade os dedos daquela forma quando estava tocando. Eu acho mais provável que ele fizesse algo como trazer o dedo médio imediatamente acima do dedo indicador e então instantaneamente afastar o indicador enquanto pressionava o médio contra o braço da guitarra.
O Quinteto do Hot Club da França dividiu a noite no Cambridge com Os Irmãos Mills, Eric Siday, Reginald Leopold & Frenchie Sartrell e a Claude Bampton's Blind Orchestra. Tocaram Django, Stephane, Roger Chaput, Eugène Vees e Louis Vola. O evento foi organizado pela revista Melody Maker. A apresentação da noite de 31 de janeiro teve nove temas registrados: Honeysuckle rose, Sweet Georgia Brown, Night and day, duas versões para My sweet, além de Souvenirs, Daphne, Black and white e Stomping at Decca.
Qui est-ce?
Um cigano que aos 12 anos era considerado prodígio do banjo e, aos 18, teve de reaprender a tocar depois que um incêndio deixou sua mão esquerda parcialmente paralisada. Este era Jean Django Reinhardt, guitarrista que dominou parte significativa da cena musical parisiense nas décadas de 1930 e 1940. Sua singularidade como instrumentista e compositor gerou uma vertente essencialmente européia do jazz, baseada apenas nos instrumentos de cordas, e é considerado pelos mais importantes críticos o único europeu a ter influenciado significativamente os criadores do estilo.
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