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domingo, 9 de agosto de 2009

O maestro e o tocador

Andres Segóvia, em The song of the guitar, Allegro Films

por Marcio Beck

Há uma lenda famosa e perene na Djangologia segundo a qual, no auge da fama, DR conheceu o renomado concertista espanhol Andres Segóvia, em festa promovida por uma condessa rica. Aproveitando o momento potencialmente histórico, trouxeram uma guitarra e Django mostrou algumas músicas. Segóvia interessou-se em aprendê-las, perguntando como poderia obter as partituras.

"Não vai ser possível", respondeu o cigano, "acabei de inventá-las."

Apócrifa ou não, a história destaca o gênio musical de Django, com base na pura criação espontânea, "orgânica", diriam alguns mais chegados às filosofices, opondo-a ao enorme conhecimento musical formal de Segovia. Pode ser lido como forma de se valorizar o gênio em estado bruto diante da técnica fria, elitista. A intenção, se tal, foi boa; só que delas, dizem que o Reino das Profundezas está abarrotado.

Não faltam também relatos de como Django afinava o instrumento rapidamente e jamais errava o tom ao entrar em um acompanhamento, elementos que levam a crer que fosse possuidor do famoso "ouvido absoluto", capacidade inata de distinguir com perfeição os intervalos sonoros (tons). Tais elementos ilustram a dicotomia improvisação musical/composição acadëmica e no caso específico, acabam por compor uma espécie de "mito do bom selvagem musical", segundo as bases lançadas por Charles Delaunay em seu livro de 1956, que merecem capítulo à parte.

No encontro, se de fato aconteceu, a admiração deve ter sido mútua. Ao traduzir as obras de JS Bach, Mendelsohn e Schubert para a guitarra espanhola Ramirez que empunhava, Segóvia provara que o instrumento - conhecido no Brasil como "violão" - era digno das peças dos compositores clássicos. Django traduzira os clássicos do jazz americano, como Louis Armstrong, Duke Ellington e Gershwin, para sua guitarra Selmer e transformara o instrumento, definitivamente, em voz ativa dentro do estilo.

Ambos foram desbravadores, de técnica perfeita. Antes de mais nada, porque tratavam o instrumento com dedicação. Os ciganos e sua musicalidade também não eram estranhos à Andaluzia onde Segóvia nascera e passara boa parte da infância. Muito pelo contrário, seus ritmos e instrumentos impregnavam a cultura musical local e o cercaram durante a infância e adolescência.

No documentário gravado em 1967 por Chirstopher Nupen em Los Olivos, mansão de Segovia em Granada, o violonista implica com os "tocadores de flamenco". Diz, sem a menor ponta de falsa modéstia que precisou "resgatar" a guitarra duas vezes: das "mãos ruidosas" dos guitarristas do estilo popular na região e da falta de repertório específico de composições para guitarra. Para esta missão, conta, recrutou a ajuda de compositores como Manuel de Falla, Federico Moreno Torroba e Francesco Turini.

Se escutasse algo parecido com a Improvisação n.1 de Django, no entanto, provavelmente se lembraria mais das composições que recebera dos amigos compositores italianos e espanhóis quando começava a carreira. É uma peça cuja execução requer técnica bastante apurada, como pode ser observado na reprodução fiel feita por Stochelo Rosenberg no North Sea Jazz Festival de 1994.

Indiscutivelmente real e bem documentado (em DVD e livro), o encontro do parceiro de Django, o violinista Stephane Grapelli, com o concertista israelense Yehudi Menuhin , na década de 1970. A "boa ideia de Michael Parkinson", como batizou Paul Balmer, biógrafo de Grappelli, ocorreu ao apresentador de TV britânico em 1971.

Ao assumir um programa de entrevistas, o jornalista já era interessado em chamar Grapelli, radicado na Inglaterra desde a Segunda Guerra, quando preferira ficar em Londres em vez de retornar à Paris com Django e o resto do Quinteto, provocando o rompimento do grupo.

Na preparação de um programa sobre Menuhim, Parkinson notou um disco de Grapelli em cima da mesa do maestro, que perguntou lhe o jornalista conhecia Grappelli. "Dizem que ele é muito bom", disse Menuhim, que ainda não escutara.

Diante da sugestão de um encontro, o prodígio da música clássica, que aos 7 anos já havia tocado com a Filarmônica de San Francisco, tremeu e disse que não seria capaz de fazer frente a alguém como Grappelli: "Não posso tocar sem partituras, não consigo improvisar!".

Grapelli, por sua vez, ao receber o convite de Parkinson, tremeu e disse que não seria capaz de fazer frente a alguém como Menuhin: "Não posso, ele é um maestro! Eu sou só um tocador de rabeca!"

Encontraram-se no estúdio da BBC e começaram a discutir que tema poderiam tocar. Desta forma, Menuhin teria tempo de preparar e anotar algumas direções para seus solos; não seria uma improvisação jazzística pura, mas já representava um diálogo entre as duas formas. Grappelli, apesar de se orgulhar de seu autodidatismo, chegou a ter instrução musical formal quando criança.

No documentário A life in the jazz century, Grappelli diverte-se lembrando como, ao pedir uma sugestão de tema de jazz a Menuhin, este tenha dito Jealousy, um tango, "na verdade, o oposto de uma tema de jazz", ri. "Depois de quatro compassos, eu não sabia para onde estava. Me diga agora quem é o maestro", confessou o israelense.

O encontro rendeu alguns discos em parceria pelos dois, dos quais os de maior destaque provavelmente são Menuhin e Grappelli play Berlin, Kern, Porter & Rodgers & Hart; Strictly for the birds e Tea for two. Parte da performance pode ser vista no Youtube, com trechos de entrevistas de Menuhin e Parkinson: