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sexta-feira, 20 de junho de 2008

Começou com uma corda quebrada*

Stephane e Django



por Marcio Beck

O clima elegante e formalíssimo do chá dançante do Hotel Claridge deve ter impedido Stéphane Grappelli de soltar uma imprecação quando uma corda de seu violino Pierre Hel – presente do mentor, Michel Warlop – arrebentou, a poucos minutos de mais um set da apresentação diária. A banda de 14 peças (vocal, acordeão, dois pianos, dois violinos, trumpete, três saxofones, duas guitarras, baixo e bateria) dirigida pelo baixista e acordeonista Louis Vola revezava-se com uma orquestra de tango e teria de voltar ao palco.

Grappelli trocou a corda, mas estava tendo dificuldades em afiná-la, devido ao som que emanava do palco. Foi para os bastidores e começou a acertar a tonalidade da corda rebelde, improvisando uma melodia que lhe ocorrera na hora. Absorvido pela imaginação, tirou algumas frases ‘quentes’ do violino, como não lhe era permitido fazer na apresentação. O público ali era extremamente conservador, completo avesso às músicas que animavam as casas noturnas da Rua Pigalle e adjacências, em meados da década de 1930.

Uma guitarra se juntou ao violino de Grappelli. Era Django Reinhardt, o singular cigano que conhecera em 1931, na boate La Croix du Sud, em Montparnasse. Grappelli lembrava como o guitarrista aparecera na casa certa noite, com cara de poucos amigos, para vê-lo e ouvi-lo. Django tocara violino na infância; abandonou-o pelo banjo, mas continuou fascinado pelo instrumento. Segundo relato de Grappelli, tão logo foram apresentados, o cigano chegou a levá-lo ao acampamento onde morava, nos arredores da cidade, para passar alguns dias tocando e bebendo.

A improvisação durou poucos minutos, mas tornou-se hábito nos intervalos do chá dançante do hotel. Com um raro entrosamento musical, a dupla passou a improvisar sobre os standards de jazz que ouviam nos discos americanos que os mesmerizavam havia anos. Outro dia, Vola juntou-se a eles, com o baixo. Noutro, Roger Chaput acrescentou uma guitarra. Eventualmente, Joseph também juntou-se ao grupo.

Grappelli, em várias entrevistas ao longo da vida, afirmou que Django chamara o irmão por estar se sentindo diminuído quando apenas Chaput os acompanhava. Quando Grappelli solava, duas guitarras sustentavam a base, além do baixo. Quando era Django a solar, havia apenas a guitarra do ‘primo’ cigano e o baixo. Com a nova formação, quando Grappelli começava um solo, Django fazia preenchimentos na base, e frases curtas. O repertório de improvisações foi se ampliando ao longo do verão de 1934. Os standards americanos Dinah e Tiger Rag eram os temas preferidos.

As jam sessions não passavam de distração para os músicos, nos raros momentos em que não estavam tocando para ganhar a vida, até que o estudante Pierre Nourry ouviu falar delas. Anos antes, ele tinha se juntado a um grupo de jovens entusiastas franceses do jazz capitaneados pelo ‘playboy erudito’ Hugues Panassiè. Filho de artistas abastados e dono de uma coleção monumental de discos americanos, Panassiè gostava de ser reconhecido como guru do grupo, oficializado com o nome de Hot Club da França.

Nourry convidou Panassiè a escutá-los, e este aprovou o som como sendo original e de qualidade. Coube a Charles Delaunay buscar a viabilidade comercial do grupo, o que não era fácil. Afinal, era swing jazz feito exclusivamente com cordas, numa época em que reinavam ainda, olimpicamente, os metais e o piano, com a marcação sincopada da bateria e uma voz potente, de preferência. Tão inovador que quando fizeram a primeira gravação, I saw stars e Confessin’ para a Odéon, em 9 de outubro daquele ano, esta foi engavetada. Muito ‘modernosa’ (modernistique), disseram os diretores da Odéon, na carta em que explicavam a recusa.

A modesta Societè Ultraphone Française, no entanto, tinha menos reputação a arriscar se o som do grupo, provisoriamente chamado Delaunay’s Jazz, fosse rejeitado pelos ouvintes. Era um selo originalmente alemão, responsável por algumas das principais gravações de música cigana do Leste Europeu à época. O diretor, monsieur Raoul Caldairou, só teve que negociar as quantias astronômicas que os músicos solicitavam.

Os acompanhantes (Chaput, Joseph e Vola) receberiam 30 francos por lado gravado; Grappelli, 50 francos. Além do pagamento, ficou acertado que Django receberia royalties de 5%. Combinado o pagamento, o Quinteto entrou no estúdio em 17 de dezembro e gravou quatro temas: Dinah, Tiger Rag, Lady be good e novamente I saw stars. Desta vez, no entanto, as músicas estavam destinadas a conquistar o grande público. Foi o que ocorreu ao longo de 1935.

* Título inspirado na abertura do capítulo 'Le hot - 1934-1935', em Django: The life an myth of a gypsy legend, de Michel Dregni (Oxford University Press, 2004).

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